Mídia
21 de Dezembro de 2009 - 13h22
Le Monde Diplomatique: o embate entre governo Lula e rede Globo
No início da década de 1980, centenas de milhares de brasileiros cantaram em coro “O povo não é bobo, abaixo a rede Globo!”, quando a corporação na qual se apoiou a ditadura militar censurou as mobilizações populares contra o regime militar, utilizando fotonovelas e futebol para tentar anestesiar a opinião pública. Hoje, um segmento crescente do público brasileiro expressa seu descontentamento frente o grupo midiático hegemônico.
Por Dario Pignotti*, no Le Monde Diplomatique (Cone Sul e Espanha)
Medições de audiência e investigações acadêmicas detectaram um dado, em certa medida inédito, sobre as relações de produção e consumo de informação: a credibilidade da rede Globo, inquestionável durante décadas, começa a dar sinais de erosão. Contudo, é possível perceber uma diferença substantiva entre a indignação atual e o descontentamento daqueles que repudiavam a Globo durante as mobilizações de três décadas atrás em defesa das eleições diretas.
Em 1985, José Sarney, primeiro presidente civil desde o golpe de Estado de 1964, obstruiu qualquer pretensão de iniciativa reformista relativa à estrutura de propriedade midiática e ao direito à informação, em cumplicidade com a família Marinho – proprietária da Globo, da qual, aliás, era sócio. O atual chefe de Estado, Luiz Inácio Lula da Silva, parece disposto a iniciar a ainda pendente transição em direção à democracia na área da comunicação.
No início de 2009, no Fórum Social Mundial realizado na cidade de Belém, Lula convocou uma Conferência Nacional de Comunicação. A partir daí, mais de 10 mil pessoas discutiram em assembleias realizadas em todo o país os rumos da comunicação e definiram propostas para levar para a Conferência, realizada de 14 a 17 de dezembro, em Brasília.
“É a primeira vez que o governo, a sociedade civil e os empresários discutem a comunicação; isso, por si só, já é uma derrota para a Globo e sua política de manter esse tema na penumbra (...). O presidente Lula demonstrou estar determinado a instalar na sociedade um debate sobre a democratização das comunicações; creio que isso terá um efeito pedagógico e poderá converter-se em um dos temas da campanha (de 2010)”, assinala Joaquim Palhares, diretor da Carta Maior e delegado na Conferência.
O embate entre Lula e a Globo poderia ser resumido como uma disputa pela verossimilhança, um bem escasso no mercado noticioso brasileiro. Ao participar quase que diariamente de atos ou eventos públicos, o presidente dialoga de forma direta com a população, estabelecendo um contrato de confiança que contrasta com a obstinação dos meios dominantes em montar um discurso noticioso divorciado dos fatos que, às vezes, beira a ficção.
Lula configura um “fenômeno comunicacional singular; o povo acredita nele, não só porque fala a linguagem da gente simples, mas porque as pessoas mais carentes foram beneficiadas com seus programas sociais; isso é concreto, o Bolsa Família atende a 45 milhões de brasileiros que não prestam muita atenção ao que diz a Globo”, observa a professora Zélia Leal Adghirni, doutora em Comunicação e coordenadora do programa de investigação sobre Jornalismo e Sociedade da Universidade de Brasília.
“Por que Lula ganhou duas vezes as eleições (2002 e 2006), uma delas contra a manifesta vontade da Globo? Por que Lula tem uma popularidade de 80%?”, pergunta Adghirni, para quem “as teorias de comunicação clássica que estudamos na universidade não são aplicadas ao fenômeno Lula. Desde a teoria da ‘agulha hipodérmica’ até a da ‘agenda setting’, dizia-se que os meios formam a opinião ou pautam o temário do público, mas com Lula isso não ocorre: os meios de comunicação estão perdendo o monopólio da palavra”.
Por outro lado, como se sabe, a construção de consensos sociais não se galvaniza só com mensagens racionais ou versões críveis da realidade, também é necessário trabalhar no imaginário das massas, um território no qual a Globo segue sendo praticamente imbatível. A empresa do clã Marinho controla o patrimônio simbólico brasileiro: é a principal produtora de novelas e detém os direitos de transmissão das principais partidas de futebol e do carnaval carioca.
Frente à gigantesca indústria de entretenimento da Globo, o governo é praticamente impotente. Não obstante, a imagem do presidente-operário provavelmente ganhará contornos míticos em 2010, com o lançamento do longa-metragem Lula, o Filho do Brasil, que será exibido no circuito comercial e em um outro alternativo (sindicatos e igrejas). O produtor Luis Carlos Barreto prevê que cerca de 20 milhões de pessoas assistirão à história do ex-torneiro mecânico que se tornou presidente, o que seria a maior bilheteria da história no país.
O balanço provisório da política de comunicação de Lula indica que esta tem sido errática. Em seu primeiro mandato (2203-2007), impulsionou a criação de um Conselho de Ética informativa, iniciativa que arquivou diante da reação empresarial. Após essa tentativa fracassada, o governo não voltou a incomodar as “cinco famílias” proprietárias da grande imprensa local, até o final de sua primeira gestão.
Em seu segundo governo – iniciado em 1° de janeiro de 2007, Lula nomeou Hélio Costa como ministro das Comunicações, um ex-jornalista da Globo que atua como representante oficioso da empresa no ministério. Mas enquanto a designação de Costa enviava um sinal conciliador aos grupos privados, Lula seguia uma linha de ação paralela.
Em março de 2008, o Senado, com a oposição cerrada do PSDB, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aprovou o projeto do Executivo para a criação da Empresa Brasileira de Comunicações, um conglomerado público de meios que inclui a interessante TV Brasil, para a qual, em 2010, o Estado destinará cerca de US$ 250 milhões. O generoso orçamento e a defesa da nova televisão pública feita pelos parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) indicavam que Lula havia decidido enfrentar a direita política e midiática. Ao mesmo tempo em que media forças com a Globo – ainda que não de forma aberta -, Lula aproximou posições com as empresas de telefonia (interessadas em participar do mercado de conteúdos e disputar terreno com a Globo) e algumas televisões privadas, como a TV Record – de propriedade de uma igreja evangélica.
A estratégia foi tomando contornos mais firmes no final do mês de outubro quando Lula defendeu, durante uma cerimônia de inauguração dos novos estúdios da Record no Rio de Janeiro, o fim do "pensamento único" capitaneado por alguns formadores de opinião (em óbvia alusão à Globo) e a construção de um modelo mais plural. Dias mais tarde, o mesmo Lula afirmava: “Quanto mais canais de TV e quanto mais debate político houver, mais democracia teremos (...) e menos monopólio na comunicação”.
Com um discurso monolítico e repleto de ressonâncias ideológicas próprias da Doutrina de Segurança Nacional (como associar qualquer objeção à liberdade de imprensa empresarial com ocultas maquinações “sovietizantes”), o grupo Globo lançou uma ofensiva, por meios de seus diversos veículos gráficos e eletrônicos, contra a incipiente tentativa do governo de estimular o debate sobre a atual ordem informativa, que alguns definem como um “latifúndio” eletrônico.
O primeiro passo neste sentido, assinala Joaquim Palhares, foi “esvaziar e boicotar a Conferência Nacional de Comunicação, retirando-se dela, dando um soco na mesa e saindo impestivamente para tentar deslegitimá-la”, movimento seguido por outros grupos midiáticos. O segundo movimento consistiu em articular um discurso institucional para fazer um cerco sanitário contra o contágio de iniciativas adotadas por governos sulamericanos como os da Argentina, Equador e Venezuela, orientadas na direção de uma reformulação do cenário midiático.
A Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) “temem que o que ocorreu na Argentina se repita no Brasil; eles veem essa lei como uma ameaça e começaram a manifestar sua solidariedade com a imprensa da Argentina”, afirma Zélia Leal Adghirni. O receio expresso pelas entidades representativas dos grandes conglomerados midiáticos é o seguinte: se o descontentamento regional contra a concentração informática ganha força junto à opinião pública brasileira, poderia romper-se a cadeia de inércia e conformismo que já dura décadas e, quem sabe, iniciar-se um gradual – nunca abrupto – processo de democratização.
O inverso também se aplica: se o Brasil, liderado por Lula, finalmente assumir como suas as teses do direito à informação e à democracia comunicacional, é certo que essa corrente de opinião, atualmente dispersa na América Sul, poderá adquirir uma vertebração e uma legitimidade de proporções continentais.
* Dario Pignotti é jornalista e doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo.
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