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terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Pague minhas alvíssaras!

FÁTIMA OLIVEIRA


Lá, as crianças não ganhavam presentes no Natal, mas alvíssaras no Ano Novo.

Quase sempre um doce ou um mimo pra enfeitar o cabelo, a roupa. Ou um perfume.


"Pague minhas alvíssaras!" Era o que a gente dizia no primeiro dia do ano para as primeiras pessoas muito próximas, parentas ou amigas – não valia para quem morava na mesma casa – que víamos, quando crianças lá na Palestina, povoado onde nasci, hoje cidade de Graça Aranha-MA. É que naquela cultura as crianças anunciavam a "boa nova" e encontrá-las cedo no primeiro dia do ano era um sinal de que o Ano Novo seria de muita sorte.

Lá, as crianças não ganhavam presentes no Natal, mas alvíssaras no Ano Novo. Quase sempre um doce ou um mimo pra enfeitar o cabelo, a roupa. Ou um perfume. E por que alvíssaras? Porque alvíssaras (substantivo feminino plural) é prêmio que se dá a quem traz boas novidades ou entrega coisa perdida ao dono.

A lembrança veio a propósito de leituras sobre os ritos de passagem que compõem os rituais do transcurso do Ano Velho para o Ano Novo, demonstrativos das diferentes maneiras de celebrar a chegada de um novo ano, por diferentes povos e setores de uma sociedade.

Sou fascinada com os ritos de passagem que marcam a chegada do Ano Novo – lendas, crendices, simpatias e superstições, posto que encerram tradições do âmbito dos desejos em interfaces com o sobrenatural, do fazer promessas, muito mais do que firmar propósitos do tipo: "Para o ano...", que no palestinês da gema de minha nascença quer dizer "no ano vindouro", justamente no "próximo ano".

Mas em especial fico intrigada, e bate uma curiosidade antropológica profunda, com a magia de Iemanjá sobre o povo brasileiro, já que nenhuma outra divindade arrasta multidões como ela. Nenhum santo da Igreja Católica Apostólica Romana, nem mesmo qualquer dos Papas que vieram ao nosso país, que a Igreja Romana enche a boca e arrota que é o maior país católico do mundo, aglutina gente como Iemanjá. Logo, há algo a desvendar, no campo da antropologia. Assim penso.

Sei o significado de um rito e de um ritual, mas fiquei numa dúvida cruel se o correto é dizer Ritos de Ano Novo ou Rituais de Ano Novo, foi então que a história das alvíssaras brotou docemente em minha memória.

E não pude deixar de conter o riso porque vovó, matreira que só ela, antes de sair de casa, para apreciar a rua, no primeiro dia do ano, a primeira providência era mandar "espiar" quem estava passando.

Se fosse um adulto ela não saía de jeito nenhum. Se fosse uma pessoa velha ela se benzia e dizia "Cruz credo!" E não saía. Então, gente ficava pastorando para avisá-la quando despontasse alguma criança. Recordo-me dela com um vestido de dois bolsos na frente onde escondia as alvíssaras... Deliciosas recordações...

Mas vejamos as definições de rito e de ritual. RITO (s.m.) – conjunto de regras e de cerimônias que se praticam numa religião, culto ou seita. Por exemplo, o rito da Igreja romana. Em Direito, rito é o conjunto de leis adjetivas que regem o exercício de uma ação em juízo. Por exemplo, rito processual. Já RITUAL (adj.) – relativo a ritos; conforme aos ritos: sacrifício ritual. — S.m. Livro que enumera as cerimônias e ritos que devem ser observados na prática de uma religião. Conjunto desses atos e práticas; rito, cerimonial.

Fiquei quase na mesma. Mas reaprendi a distinguir que rito é substantivo e ritual é adjetivo, mas pode ser substantivo quando se refere ao conjunto dos ritos de uma dada celebração. Então, posso dizer que os Rituais de Ano Novo são compostos por diferentes ritos, pois em geral em cada país a chegada do Ano Novo é celebrada de uma maneira. Num mesmo país os rituais podem ser diferentes, a depender se é na praia, na montanha ou na roça...

No Brasil, os rituais contemporâneos exigem a presença de água, o que é, sobretudo, uma incorporação de ritos de cultos afros, com as oferendas à Iemanjá, a grande mãe (mãe de todos os orixás), que na mitologia africana é a Rainha do Mar e a Deusa do Amor, chamada também de Dona Janaína, Sereia do Mar, Princesa do Mar, Inaê, Mucunã e é também considerada a Rainha das Bruxas.

Porém no sincretismo religioso brasileiro Iemanjá é Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Piedade, Virgem Maria, Nossa Senhora de Candeias (que também é Oxum!), Nossa Senhora dos Navegantes, cuja data oficial é 2 de fevereiro, mas em 31 de dezembro (réveillon) Iemanjá é a grande cultuada e recebe em geral oferendas que servem à sua vaidade (ela é muito vaidosa!), tais como espelhos, sabonetes, pentes, pulseiras, colares, coroas, velas, perfumes e flores.

Iemanjá no Brasil é cultuadíssima nas cidades portuárias, por reinar sobre as águas e proteger a pesca e pescadores, todavia se constituiu num mito-fenômeno de grande poder de aglutinação e credibilidade, pois quem nela crê diz que ela leva, num passe de mágica, todos os problemas para o fundo do mar.

Não à-toa, para muita gente, em nosso país, celebrar o Ano Novo só pode ser na praia! Quando a celebração ocorre em águas doces as oferendas devem ser pra Oxum, dotada de grande poder de sedução e Rainha das Águas Doces. Mas em geral ninguém lembra... E por todo lado o que se ouve é:

"Iemanjá é a rainha do mar
Iemanjá é a rainha do mar
Salve o povo de aruanda
Salve meu Pai Oxalá
Salve Oxóssi, salve os guias
Salve Ogum Beira Mar
Iemanjá
Iemanjá é a rainha do mar
Iemanjá é a rainha do mar
Vai ter festa na aruanda
Vai ter reza no Cantuá
Vai ter gira a noite inteira
E muitas flores no mar
Iemanjá".

Iemanjá, sabe-se que é uma "Deusa da nação de Egbé, nação esta Ioruba onde existe o rio Yemojá (Iemanjá). Orixá muito respeitada e cultuada é tida como mãe de quase todos os Orixás. Por isso a ela também pertence a fecundidade."

Oxum é "Nome de um rio na Nigéria, em Ijexá e Ijebú. Segunda mulher de Xangô, deusa do ouro, riqueza e do amor. A Oxum pertence o ventre da mulher e ao mesmo tempo controla a fecundidade, por isso as crianças lhe pertencem. Dona dos rios e cachoeiras gosta de usar colares, jóias, tudo relacionado à vaidade, perfumes, etc".

Em Belo Horizonte, na lagoa da Pampulha, há uma estátua de Iemanjá, há 50 anos. Na data do cinqüentenário ( 18.08.2007) foi inaugurado o Portal da Memória, como um símbolo de proteção à Iemanjá, monumento de autoria do artista plástico Jorge dos Anjos, em memória dos orixás e conforme ele: "É um marco para Iemanjá, é um ponto de religiosidade".

Foi para Iemanjá que Edu Lobo e Vinicius de Moraes compuseram "Arrastão", celebrizada na voz de Elis Regina, que conquistou o 1º. lugar no I Festival de Música Popular Brasileira (1965):


Arrastão

Edu Lobo e Vinicius de Moraes

Eh, tem jangada no mar
Eh, eh, eh, hoje tem arrastão
Ê, todo mundo pescar
Chega de sombra João
Jovi, olha o arrastão entrando no mar sem fim
Ê meu irmão me traz Yemanjá pra mim

Minha Santa Bárbara
Me abençoai
Quero me casar com Janaína
Eh, puxa bem devagar
Eh, eh, eh já vem vindo o arrastão
Eh, é a rainha do Mar
Vem, vem na rede João
Pra mim
Valha-me Deus Nosso Senhor do Bonfim
Nunca, jamais se viu tanto peixe assim ...

Antonio Risério, no artigo "O ano-novo de Iemanjá" (2007), assim se expressou: "O que aconteceu com Iemanjá, no Brasil, é muito, muito interessante. Ela chegou em terras (e águas, claro) brasileiras aí pela segunda metade do século 18, trazida por negros nagôs – naquela época, vendidos, em boa parte, à Bahia, pelos reis do Daomé.

Mas, ainda nas décadas de 1920 e 1930, no Brasil, um poema sobre Iemanjá era tido – em nossos ambientes sociais economicamente mais privilegiados – na conta de coisa exótica, regionalismo, "pesquisa folclórica". Uma canção antiga de Caymmi – "a alodê Iemanjá oeá" – deveria soar, e soava, para determinados públicos, com algo estranho, distante. Como uma espécie qualquer de mistério remoto.

Hoje, o que a gente vê é coisa totalmente diferente. Todo mundo sabe quem é Iemanjá. Porque houve uma mudança enorme, uma transformação nas estruturas da sensibilidade brasileira. Uma mudança nas relações existentes no interior do conjunto de nossa configuração cultural. Os orixás passaram a povoar, inclusive, o cantão da assim chamada 'cultura superior'. Terreiros começaram a ser tombados, como bens preciosos do povo brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Etc. E, no ano novo, levas e levas de brasileiros seguem para as praias, para, de algum modo, falar com a deusa do mar."

E prossegue: "É claro que a Iemanjá brasileira não é mais, exatamente, a Iemanjá africana. Nem poderia ser. A brasileira é brasileira, assim como a cubana é cubana. Mas a matriz, o desenho básico e profundo, está lá, na África. E é ela que atrai multidões para a beira do mar, no ano-novo. A Grande Mãe, com seu axé assentado sobre conchas e pedras marinhas. É ela que faz parte do rito de passagem de ano. Quando todos parecem pedir o recomeço, o renascimento, um novo começo da vida e do mundo."

Conto de Areia, de Romildo e Toninho, na inesquecível voz de Clara Nunes, é também uma música de rara beleza para Iemanjá, na condição de Deusa do Amor, mas reza a lenda que quando ela se apaixona por algum homem o leva para o fundo do mar, não permitindo que ele vivencie um amor terreno...


Conto de Areia

Romildo e Toquinho

"É água no mar
É maré cheia ô
Mareia ô, mareia


Contam que toda tristeza que tem na Bahia
Nasceu de uns olhos morenos molhados de mar
Não sei se é conto de areia ou se é fantasia
Que a luz da candeia alumia pra gente contar
Um dia morena enfeitada de rosas e rendas
Abriu seu sorriso de moça e pediu pra dançar
A noite emprestou as estrelas bordadas de prata
E as águas de Amaralina eram gotas de luar

Era um peito só
Cheio de promessa era só
Quem foi que mandou o seu amor
Se fazer de canoeiro
O vento que rola nas palmas
Arrasta o veleiro
E leva pro meio das águas
de Iemanjá
E o mestre valente vagueia
Olhando pra areia sem poder chegar


Adeus, amor
Adeus, meu amor não me espera
Porque eu já vou me embora
Pro reino que esconde os tesouros
de minha senhora
Desfia colares de conchas pra vida passar
E deixa de olhar pros veleiros
Adeus, meu amor, eu não vou mais voltar
Foi beira-mar, foi beira-mar quem chamou


Das Gerais, com votos de um 2008 de merecidos prazeres, ofereço-lhes versos de Drummond, de Vinicius, de Mario Quintana, de Manuel Bandeira, Florbela Espanca e Hilda Hilst, em cintilantes dias de sol e belos dias de chuva, pois como falou Fernando Pessoa: "Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é".


Fátima Oliveira é médica, escritora, especialista em bioética e saúde da população negra e militante da causa negra e das mulheres.
E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br
Fonte do texto: Portal Mário Lincoln


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