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domingo, 24 de maio de 2009

Algumas visões sobre os piratas da Somália

Há alguns meses os 'piratas da Somália' vêm tomando as manchetes dos jornais e chamadas dos telejornais. Abaixo três visões sobre esta questão.



Estão-nos mentindo sobre os piratas

5/1/2009, Johann Hari: The Independent, UK


Quem imaginaria que em 2009, os governos do mundo declarariam uma nova Guerra aos Piratas? No instante em que você lê esse artigo, a Marinha Real Inglesa – e navios de mais 12 nações, dos EUA à China – navega rumo aos mares da Somália, para capturar homens que ainda vemos como vilãos de pantomima, com papagaio no ombro. Mais algumas horas e estarão bombardeando navios e, em seguida, perseguirão os piratas em terra, na terra de um dos países mais miseráveis do planeta. Por trás dessa estranha história de fantasia, há um escândalo muito real e jamais contado. Os miseráveis que os governos 'ocidentais' estão rotulando como "uma das maiores ameaças de nosso tempo" têm uma história extraordinária a contar – e, se não têm toda a razão, têm pelo menos muita razão.

Os piratas jamais foram exatamente o que pensamos que fossem. Na "era de ouro dos piratas" – de 1650 a 1730 – o governo britânico criou, como recurso de propaganda, a imagem do pirata selvagem, sem propósito, o Barba Azul que ainda sobrevive. Muita gente sempre soube disso e muitos sempre suspeitaram da farsa: afinal, os piratas foram muitas vezes salvos das galés, nos braços de multidões que os defendiam e apoiavam. Por quê? O que os pobres sabiam, que nunca soubemos? O que viam, que nós não vemos? Em seu livro Villains Of All Nations, o historiador Marcus Rediker começa a revelar segredos muito interessantes.

Se você fosse mercador ou marinheiro empregado nos navios mercantes naqueles dias – se vivesse nas docas do East End de Londres, se fosse jovem e vivesse faminto –, você fatalmente acabaria embarcado num inferno flutuante, de grandes velas. Teria de trabalhar sem descanso, sempre faminto e sem dormir. E, se se rebelasse, lá estavam o todo-poderoso comandante e seu chicote [ing. the Cat O' Nine Tails, lit. "o Gato de nove rabos"]. Se você insistisse, era a prancha e os tubarões. E ao final de meses ou anos dessa vida, seu salário quase sempre lhe era roubado.

Os piratas foram os primeiros que se rebelaram contra esse mundo. Amotinavam-se nos navios e acabaram por criar um modo diferente de trabalhar nos mares do mundo. Com os motins, conseguiam apropriar-se dos navios; depois, os piratas elegiam seus capitães e comandantes, e todas as decisões eram tomadas coletivamente; e aboliram a tortura. Os butins eram partilhados entre todos, solução que, nas palavras de Rediker, foi "um dos planos mais igualitários para distribuição de recursos que havia em todo o mundo, no século 18 ".

Acolhiam a bordo, como iguais, muitos escravos africanos foragidos. Os piratas mostraram "muito claramente – e muito subversivamente – que os navios não precisavam ser comandados com opressão e brutalidade, como fazia a Marinha Real Inglesa." Por isso eram vistos como heróis românticos, embora sempre fossem ladrões improdutivos.

As palavras de um pirata cuja voz perde-se no tempo, um jovem inglês chamado William Scott, volta a ecoar hoje, nessa pirataria new age que está em todas as televisões e jornais do planeta. Pouco antes de ser enforcado em Charleston, Carolina do Sul, Scott disse: "O que fiz, fiz para não morrer. Não encontrei outra saída, além da pirataria, para sobreviver".

O governo da Somália entrou em colapso em 1991. Nove milhões de somalianos passam fome desde então. E todos e tudo o que há de pior no mundo ocidental rapidamente viu, nessa desgraça, a oportunidade para assaltar o país e roubar de lá o que houvesse. Ao mesmo tempo, viram nos mares da Somália o local ideal onde jogar todo o lixo nuclear do planeta.

Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo desfez-se (e os ricos partiram), começaram a aparecer misteriosos navios europeus no litoral da Somália, que jogavam ao mar contêineres e barris enormes. A população litorânea começou a adoecer. No começo, erupções de pele, náuseas e bebês malformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de barris enferrujados e com vazamentos apareceram em diferentes pontos do litoral. Muita gente apresentou sintomas de contaminação por radiação e houve 300 mortes.

Quem conta é Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU à Somália: "Alguém está jogando lixo atômica no litoral da Somália. E chumbo e metais pesados, cádmio, mercúrio, encontram-se praticamente todos." Parte do que se pode rastrear leva diretamente a hospitais e indústrias européias que, ao que tudo indica, entrega os resíduos tóxicos à Máfia, que se encarrega de "descarregá-los" e cobra barato. Quando perguntei a Ould-Abdallah o que os governos europeus estariam fazendo para combater esse 'negócio', ele suspirou: "Nada. Não há nem descontaminação, nem compensação, nem prevenção."

Ao mesmo tempo, outros navios europeus vivem de pilhar os mares da Somália, atacando uma de suas principais riquezas: pescado. A Europa já destruiu seus estoques naturais de pescado pela superexploração – e, agora, está superexplorando os mares da Somália. A cada ano, saem de lá mais de 300 milhões de atum, camarão e lagosta; são roubados anualmente, por pesqueiros ilegais. Os pescadores locais tradicionais passam fome.

Mohammed Hussein, pescador que vive em Marka, cidade a 100 quilômetros ao sul de Mogadishu, declarou à Agência Reuters: "Se nada for feito, acabarão com todo o pescado de todo o litoral da Somália."

Esse é o contexto do qual nasceram os "piratas" somalianos. São pescadores somalianos, que capturam barcos, como tentativa de assustar e dissuadir os grandes pesqueiros; ou, pelo menos, como meio de extrair deles alguma espécie de compensação.

Os somalianos chamam-se "Guarda Costeira Voluntária da Somália". A maioria dos somalianos os conhecem sob essa designação.

Pesquisa divulgada pelo site somaliano independente WardheerNews informa que 70% dos somalianos "aprovam firmemente a pirataria como forma de defesa nacional".

Claro que nada justifica a prática de fazer reféns. Claro, também, que há gângsteres misturados nessa luta – por exemplo, os que assaltaram os carregamentos de comida do World Food Programme. Mas em entrevista por telefone, um dos líderes dos piratas, Sugule Ali disse: "Não somos bandidos do mar. Bandidos do mar são os pesqueiros clandestinos que saqueiam nosso peixe." William Scott entenderia perfeitamente.

Por que os europeus supõem que os somalianos deveriam deixar-se matar de fome passivamente pelas praias, afogados no lixo tóxico europeu, e assistir passivamente os pesqueiros europeus (dentre outros) que pescam o peixe que, depois, os europeus comem elegantemente nos restaurantes de Londres, Paris ou Roma? A Europa nada fez, por muito tempo. Mas quando alguns pescadores reagiram e intrometeram-se no caminho pelo qual passa 20% do petróleo do mundo... imediatamente a Europa despachou para lá os seus navios de guerra.

A história da guerra contra a pirataria em 2009 está muito mais claramente narrada por outro pirata, que viveu e morreu no século 4º AC. Foi preso e levado à presença de Alexandre, o Grande, que lhe perguntou "o que pretendia, fazendo-se de senhor dos mares." O pirata riu e respondeu: "O mesmo que você, fazendo-se de senhor das terras; mas, porque meu navio é pequeno, sou chamado de ladrão; e você, que comanda uma grande frota, é chamado de imperador." Hoje, outra vez, a grande frota europeia lança-se ao mar, rumo à Somália – mas... quem é o ladrão?


Piratas da Somália e a política externa dos EUA

14/4/2009, Rebecca Macaux e Philip Primeau*, Counterpunch



Com a explosão da pirataria na Somália, os EUA estão colhendo o que plantaram. Por várias vias, os EUA só podem culpar-se, eles mesmos, pela emergência desse tipo de crime de alto-mar que ameaça interromper importantes vias comerciais.

Os EUA deram integral apoio a um governo despótico e violento durante os anos pós-coloniais na Somália, anos de formação. Esse apoio deturpou o desenvolvimento de instituições políticas estáveis e minou gravemente a capacidade de constituir governo estável e crescimento sustentável.

Os mercados nacionais também são vítimas da intromissão estrangeira, desastres dessa 'caridade' com ás escondido na manga, que tanto contribuiu para o descrédito de atores ocidentais, sobretudo para o descrédito dos EUA, em todo o Terceiro Mundo.

Tornados economicamente impotentes pelos desvios nas 'ajudas' e no assistencialismo que receberam dos governos dos EUA e de inúmeras ONGs, não surpreende que os somalianos tenham acabado por recorrer à pirataria, na luta para sobreviverem.

As ações às quais o mundo assiste hoje não são resultado de cobiça, mas do desespero. São o pecado, como recurso derradeiro.

* * *

A Somália que vemos hoje foi formada em 1960, da união de duas ex-colônias europeias, uma inglesa, a outra italiana. O que começou como exercício de democracia constitucional rapidamente se converteu em ditadura, sob o comando de Maxamed Siyaad Barre.

Embora Barre tenha-se aproximado inicialmente da URSS, esse relacionamento azedou em 1977-79. Moscou acabou por abandonar a Somália à sua própria sorte; e passou a apoiar a vizinha Etiópia, na disputa pelo controle da região de Ogaden.

Confiado em que a posição de traído pela URSS facilitaria os contatos, Barre pediu assistência militar aos EUA, na luta contra países vizinhos e para reprimir a resistência interna. Como em tantas outra vezes, o presidente Carter quase caiu na esparrela e chegou a dar luz verde para o envio de munições; no último momento, mudou de ideia.

Sem o apoio de uma grande potência, as forças somalianas foram escorraçadas de Ogaden, derrotadas por uma força tarefa etíope-soviética-cubana. O governo de Barre balançou, à beira do colapso.

Contudo, no governo de Ronald Reagan, o homem das guerras, os EUA repentinamente voltaram a interessar-se pelo Chifre da África. Henry Kissinger encontrou-se pessoalmente com Barre e, em 1981, os EUA começaram a suprir o ditador com armamentos e cerca de 100 milhões de dólares por ano.

Como retribuição, os EUA ganharam pleno controle sobre o porto de águas profundas de Berbera, no Golfo de Aden. Berbera era considerado porto de alta importância estratégica para enfrentar os avanços dos soviéticos em direção ao Chifre da África e à península Arábica. E oferecia a vantagem de estar ali, em rota essencial para o petróleo.

Assim fortalecido com armas e dólares norte-americanos, Barre conseguiu sobreviver à Guerra Fria; ele sobreviveu; a Somália não teve a mesma sorte.

* * *

Como em quase todas as nações-peões do Terceiro Mundo, o regime de Barre sempre foi fundamentalmente instável, necessitando de níveis cada vez mais altos de ajuda financeira. Ao final da Guerra Fria, os norte-americanos praticamente reduziram a zero a importância estratégica da Somália e, correspondentemente, também cancelaram a ajuda financeira, classificada como gasto desnecessário.

Com o fim do patrocínio norte-americano, a agitação social converteu-se em devastadora guerra civil. Barre foi derrubado em 1991 e morreu quatro anos depois, de ataque cardíaco. Pouco depois, os EUA tentaram na Somália uma 'invasão humanitária', que culminou no fiasco da "Queda do Falcão Negro" [ing. ‘Black Hawk Down’], em 1992-3[1]. Naquele momento, a Somália mergulhou no caos; hoje, "caos" e "Somália" são palavras ouvidas como sinônimas.

Apesar dos discursos altissonantes dos EUA, como campeões dos direitos humanos e da democracia em todo o mundo, não deixaram nem vestígios nem de democracia nem de direitos humanos na Somália, naqueles anos cruciais da constituição de um Estado pós-colonial. O apoio dado a Barre poderia ter servido para promover a constituição de governo mais democrático ou transparente. Nada disso. Os EUA, na Somália, só fizeram fortalecer uma tradição de mando arbitrário, de governo pela força.

A Somália entrou nos anos 90s sem qualquer projeto econômico e sem instituições políticas. Culpa, também, dos 'planejadores' ocidentais em geral e norte-americanos em especial.

Ao longo dos anos, as relações de mercado haviam sido atrofiadas pela facilidade com que chegavam as 'ajudas' financeiras. A agricultura foi minada por navios que chegavam carregados de produtos ocidentais vendidos abaixo do preço, em detrimento dos agricultores somalianos que não podiam competir com os 'presentes'.

Sem qualquer tipo de mercado interno, os somalianos acabaram presos no ciclo sem saída da dependência. Há uma trágica ironia, aí: na esperança de eliminar a fome na Somália, os EUA de fato mataram a capacidade de a nação alimentar-se por seus meios. E sobreveio a fome, avassaladora.

A situação foi agravada por um passado regional, local, de crises periódicas de falta de alimentos, combinadas com movimentos de levas de refugiados. Essas emergências humanitárias sempre serviram como pretexto, no tempo de Barre – quando não foram construídas, sob tácita aprovação dos EUA –, para os pedidos de ajuda humanitária; assim Barre construiu seu governo, tão mais arbitrário quanto mais o país naufragava no caos.

Barre ficou conhecido por 'administrar' os carregamentos de comida, em benefício sempre de um pequeno círculo de apoiadores locais, ligados a ele por laços étnicos, do qual eram excluídos os demais clãs que há no país – e dos quais começou a nascer feroz oposição ao seu governo.

Com o fim dos carregamentos de alimentos enviados dos EUA, Barre perdeu seu principal instrumento na luta para manter-se no poder. Sem qualquer apoio popular, foi derrubado do governo, em 1991.

Começou então uma etapa em que outros clãs, no território da mesma Somália, assumiram os mecanismos pelos quais ainda se podia extrair importante ajuda dita humanitária de vários agentes estrangeiros, sobretudo de ONGs, como a "Cooperative for Assistance and Relief Everywhere" e "Save the Children". A comida, na Somália, continuou a ser instrumento explícito de política, usado para premiar aliados e punir os opositores. E assim, afinal, o Ocidente continuou e continua a manter ativo um conflito que talvez já tivesse encontrado alguma via de conciliação, se tivesse sido possível evitar a interferência externa.

* * *

Dissemos acima que os EUA estão colhendo o que plantaram. A pirataria é, hoje, na Somália, resposta de nação que foi entregue a um governo arbitrário e violento, que foi apoiado pelos EUA na década dos 80s, e que distribuiu fome e violência.

Ao mesmo tempo, os EUA colhem hoje também o que não semearam. Por mais de uma década, o governo de Barre dependeu completamente da ajuda norte-americana. O caos, portanto, é consequência direta de uma estratégia de 'apoio' que não se pode supor que tenha sido ingênua.

A dependência econômica poderia ter sido usada para construir instituições democráticas; para facilitar e estimular o desenvolvimento de estruturas econômicas e políticas estáveis; para fazer prosperar a agricultura somaliana local, para preservar as águas territoriais e impedir a pesca predatória e a devastação das condições ambientais e de sobrevivência das populações. Os somalianos pescadores foram praticamente empurrados para a pirataria.

Os EUA não reagiram contra a brutalidade do governo de Barre. Os EUA jamais pressionaram na direção de qualquer reforma ou de qualquer democratização.

Em vez disso, mataram um mercado interno já muito frágil e extinguiram a agricultura somaliana mediante políticas desastrosas, coordenadas pelo FMI e seus programas de "ajuste estrutural".

Os EUA estão frenéticos, porque os piratas somalianos estão atacando navios norte-americanos. Ao mesmo tempo, insistem em não ver o papel dos EUA no longo processo de destruição do tecido social na sociedade somaliana – e na criação de um vácuo de poder democrático no qual os criminosos sempre levam vantagem... exatamente como acontece na Somália há 25 anos!

A Somalia é caso a ser estudado, de consequências políticas não previstas, de intenções pouco claras, no quadro do karma infeliz da realpolitik.

Os EUA precisam acordar para a evidência de que ações políticas têm consequências políticas e que ninguém é imune a elas. Têm de aprender a ver que táticas políticas de curto prazo não substituem projetos de desenvolvimento de mais longo prazo. Estratégias políticas de mais longo prazo podem ajudar a criar mundo mais justo e igualitário; táticas de curtissimo prazo sempre voltam, como almas penadas, a atormentar, primeiro, os EUA.


[1] Sobre a invasão da Somália, em 1992-3, ver aqui

*Rebecca Macaux e Philip Primeau animam o blog Who-Whom. Recebem e-mails em primeau.pr@gmail.com

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