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sábado, 14 de agosto de 2010

À margem do rio dos Mortos – Parte 4

Na quarta e última parte da reportagem especial sobre desaparecidos na ditadura, Paula Sacchetta escreve sobre como um processo doloroso de espera durou cinco anos, mas poderia ter durado apenas 15 dias. Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos.

14 de agosto de 2010 às 14:53h

Como um processo doloroso de espera durou cinco anos, mas poderia ter durado apenas 15 dias. Hoje, no Brasil, ainda são 144 os desaparecidos políticos

Cena 7: será Maria Lúcia? – Quase 20 anos depois, em 1991, acharam ossadas do Araguaia. A irmã de João Carlos Haas, militante do PCdoB que também esteve na guerrilha, obteve indicações de moradores da região de que seu irmão estava enterrado no cemitério de Xambioá, no Tocantins. A Comissão de Justiça e Paz da Prefeitura de São Paulo foi até a região, acompanhada de uma equipe de legistas da Unicamp.

No lugar da escavação em busca de restos mortais de João Hass, foi encontrada, envolta em um paraquedas, uma ossada de uma mulher que teria entre 20 e 24 anos. Junto, estavam os projéteis de uma metralhadora de uso militar. Na ocasião, Fortunato Badan Palhares, à frente da equipe de legistas, afirmou, em entrevista à TV Manchete, que certamente era uma guerrilheira, principalmente porque tinha uma coroa de dente tratada. Se fosse uma moradora da região, não teria tratamento dentário nem tipo algum de prótese.

A informação chegou à Laura Petit. Os restos mortais encontrados talvez pudessem ser de sua irmã. A ossada foi levada à Unicamp. “Na volta do cemitério de Xambioá para São Paulo, Badan Palhares parou em Brasília e conversou com Romeu Tuma. Consta que, nessa época, Tuma teria recomendado a Palhares que não identificasse ossadas de nenhum guerrilheiro do Araguaia. Assim, a atitude dele mudou completamente depois daquela primeira entrevista para a TV Manchete”, conta Laura.

Nessa época, Luiza Erundina, prefeita de São Paulo, deu muito apoio à comissão de familiares. Selou um convênio para que o Departamento de Medicina Legal da Unicamp fizesse identificações de ossadas.

História da carochinha- “Fui umas três vezes até a Unicamp levar fotos e outras coisas que pudessem ajudar na identificação da ossada. Mostrei fotos da Maria Lúcia e o depoimento da Regilena dizendo como ela estava vestida no dia em que foi morta: com uma calça de brim e um cinto de couro com fivela de metal. Portava uma cartucheira de 20mm e uma espingarda de caça. Como estavam no meio da mata, tinham que caçar para comer”, lembra.

“Cheguei à Unicamp um dia cedo, e o Palhares não estava. Fiquei esperando até às dez horas da noite. Ele tinha ido a Vinhedo ver uma santa que chorava para fazer a perícia. Chegou tarde e me atendeu muito rapidamente. Já chegou falando: ‘não, não é sua irmã, o cabelo que tem aí é claro. Na foto que você me trouxe, ela tem cabelo escuro. Essa mulher que está aí dentro tem cabelo encaracolado, o que não era o caso da sua irmã!’. Ele tentou me contar uma história da carochinha: ‘você ainda vai encontrar sua irmã, não se preocupe’. Como se eu não tivesse certeza absoluta de que ela tinha sido executada. E ainda gritou comigo: ‘o cabelo que está aí é claro, você quer ir lá dentro ver?’. Imagine se eu, sendo irmã, às dez horas da noite, cansada e impactada pela expectativa, diria ‘sim, eu quero que você me mostre’. Recuei: ‘não, agora, não’. Como é que, sem preparo algum, eu poderia entrar naquela sala e olhar? Não sou uma técnica de Instituto Médico Legal!”. Laura conta que Palhares nunca deu a possibilidade de se fazer um exame de DNA. “Eu era a irmã dela e nossa mãe ainda estava viva quando a ossada foi encontrada”.

Badan deixou o caso de lado por um tempo, e, além disso, Laura estava passando por um período muito difícil. Em 1990, perdeu a filha caçula, de então quatro anos de idade. Em 1991, quando houve a exumação e a possibilidade de identificar a irmã, ainda estava muito impactada pela perda da menina. Foi algumas vezes até a Unicamp e não teve retorno algum. “Ainda disse a Palhares que conhecia o dentista que havia tratado o dente da Maria Lúcia. Eu poderia procurá-lo. E ele falou: ‘procure e me traga as radiografias’. Fui até Bauru atrás do Dr. Tanaka e pedi as radiografias. Ele disse que, depois de mais de 20 anos, não tinha mais nada de Maria Lúcia, mas que, apesar disso, lembrava direitinho do trabalho feito. Nossa mãe não tinha muito dinheiro para uma coroa de ouro, então ele fizera de outro metal. Afirmou ser capaz de reconhecer o dente, porque o trabalho de prótese é quase artesanal. Quando contei ao Badan Palhares, ele afirmou que só aceitava receber o dentista com as radiografias em mãos”.

Estado que ainda mata – Em abril de 1996, o jornal O Globo publicou uma grande reportagem, durante uma semana, sobre a Guerrilha do Araguaia. Um militar entregara todas as suas anotações com fotos e fatos sobre os enfrentamentos entre as forças da ditadura e os militantes do PCdoB. Uma das autoras da reportagem foi a São Paulo à procura de Laura.

Queria que ela reconhecesse Maria Lúcia. “Era uma foto da Maria Lúcia deitada em um paraquedas com um saco plástico cobrindo seu rosto. Eu reconheci, claro que era a Maria Lúcia. E aparecia a calça de brim e o cinto com fivela de metal que estavam com a ossada na Unicamp. Além disso, aqueles restos mortais haviam sido achados envoltos em um paraquedas”.

Depois de ver as fotos, Laura voltou para casa. Estava atordoada, desolada. Viu a irmã morta, lembrou-se da filha que havia perdido e ficou, então, comparando o que as duas tinham de parecido. “A Maria Lúcia era ligeiramente estrábica, usava óculos desde pequena e minha filha também precisou usar, desde bebê”. Quando chegou em casa e ligou a televisão, o noticiário anunciava: 17 de abril de 1996, no sul do Pará, 19 sem-terra foram mortos pela polícia. Era o massacre de Eldorado dos Carajás. “Pra mim, aquilo foi muito, muito forte. Ligo a televisão e vejo PMs armados, praticamente na mesma região, matando camponeses. Dezenove deles. Lembro que, na ocasião, pensei: ‘puxa vida, este país está como anos atrás’. Tinha acabado a ditadura e o Estado continuava matando”.

Cena 8: é ela, é ela! – Depois de publicada a matéria, a jornalista d’O Globo mandou à Laura as fotos de Maria Lúcia ampliadas. “Fomos com a comissão de familiares até a Unicamp. Chegamos com as fotos e, a nós, se juntou uma comissão grande de estudantes da Unicamp, para colocar o Badan contra a parede. Tinha imprensa e tudo mais. Quando ele chegou e viu aquela movimentação toda, acuado, falou, naquele tom professoral típico dele, que só receberia a mim e a meu marido”.

Badan viu as fotos e, finalmente, falou que faria a identificação, “pois, agora sim, tinha indícios. Eu deveria até trazer o dentista de Bauru”, conta Laura. Sua ida à Unicamp foi perto do dia 2 de maio de 1996. Em 15 de maio, o legista convocou uma entrevista coletiva para anunciar à imprensa e à sociedade a identificação de Maria Lúcia. “Ele fez, em 15 dias, o que havia demorado cinco anos para fazer”. Depois do caso PC Farias e das ossadas de Perus, o Departamento de Medicina Legal da Unicamp foi fechado por processos administrativos. “No caso PC Farias, ficou muito claro o caráter desse homem”, diz Laura.

A família Petit esperou até 16 de junho para fazer o traslado dos restos mortais da Unicamp ao cemitério. Maria Lúcia havia sido morta em 16 de junho de 1972. Foram 24 anos para ser encontrada, identificada e enterrada. Mais tempo do que ela viveu. Foi morta aos 22 anos.

“Nessa época, minha mãe disse que passaria, então, a esperar para poder sepultar seus outros dois filhos, mas, infelizmente, faleceu antes de fazer isso. Ela viveu uma espera eterna. Não conseguiu sepultar os outros dois filhos, não conseguiu que os arquivos fossem abertos nem que o governo devolvesse às famílias os restos mortais”, conta.

Vida suspensa -“Durante todo esse tempo, eu pensava, diariamente, se era ou não era minha irmã e o que poderia ser feito. É uma angústia constante, que não te deixa nunca. Depois de todas as negativas do Badan, ficamos esperando ver se alguma coisa nova acontecia. Por isso, é cada vez mais necessária a abertura dos arquivos da ditadura. O simples fato de esse militar que não se identificou entregar seus arquivos possibilitou a identificação da Maria Lúcia”, diz Laura, que indaga: “Quantos outros desaparecidos não poderiam ser localizados e identificados para que as famílias pudessem encerrar esse luto eterno? O luto é uma tristeza muito grande, mas que podemos compartir socialmente. Choramos e depois começamos a tocar a vida de novo. No nosso caso, não conseguimos concretizar a morte, porque não temos um corpo para chorar. Não encerramos esse período de luto. Não é uma tristeza, é uma melancolia que passa a nos acompanhar a vida toda. Ficamos com a vida truncada. Suspensa”.

Até a Lei de Anistia, Laura acreditava que Jaime e Lúcio poderiam estar vivos. “Eu tinha a esperança, sobretudo, que o Lúcio voltaria. Diziam que ele era um mateiro muito experiente. Durante a infância toda, tinha pescado nos rios perto de onde morávamos. Eu pensava que ele poderia ter caminhado, caminhado, até chegar à fronteira com algum país. Eu tinha um primo muito companheiro da gente na juventude. Um dia ele foi à Salvador e voltou dizendo que havia visto o Lúcio por lá e que ele tinha passado reto e fingido que não o conhecia. As pessoas ficam nessa coisa, nesse sebastianismo: eu vi em tal lugar, eu sei que vai voltar”.

Cena final: 30 anos depois ou procura-se – Segundo relatos de um camponês da região na época da guerrilha, Jaime foi morto pelos militares. Estava sozinho em uma cabana, magro, com feridas de leishmaniose e sem munição. Abriram fogo contra a cabana, uma fumaça se levantou com a poeira do chão e, quando foram ver, o corpo de Jaime estava “esbagaçado” pelos tiros. Depois de morto, ainda teve a cabeça cortada para identificação e o corpo foi enterrado no local. A cabeça foi colocada em um saco e entregue ao chefe da operação na região, o doutor Augusto.

Já Lúcio foi preso, interrogado durante três dias e “foi feito” no dia de Tiradentes, 21 de abril. Na última foto em que se acredita que Lúcio aparece, ele está dentro de um helicóptero, provavelmente sendo levado para o “voo da morte”. Os prisioneiros eram levados para longe e executados.

Até hoje, nenhuma notícia deles. Nenhuma certeza. E Laura é apenas uma das pessoas que seguem esperando. Hoje, no Brasil, são 144 os desaparecidos políticos. Como definiu Ivan Seixas, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, “são os fantasmas que voltam sempre. São os fantasmas que querem lembrar que não podem ser esquecidos”.

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Trecho da letra da música “Angélica”, de Chico Buarque.

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